sexta-feira, 5 de novembro de 2010


Teu aniversário, no escuro,
não se comemora.

[...] Em verdade paraste de fazer anos.
Não envelheces. O último retrato
vale para sempre. És um homem cansado
mas fiel: carteira de identidade. [...]

[...] Vejo-te mais longe. Ficaste pequeno.
Impossível reconhecer teu rosto, mas sei que és tu.
Vem da névoa, das memórias, dos baús atulhados,
da monarquia, da escravidão, da tirania familiar. [...]

[...] Queria abandonar-te, negar-te, fugir-te,
mas curioso:
já não estás, e te sinto,
não me falas, e te converso.
E tanto nos entendemos, no escuro,
no pó, no sono.

E pergunto teu segredo.
Não respondes. Não o tinhas.[...]

[...]E tu, que me dizes tanto
Disso não me contas nada.

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!
É certo que intimidavas.

Guardavas talvez o amor
Em tripla cerca de espinhos.

Já não precisa guardá-lo.
No escuro em que fazes anos,
no escuro,
é permitido sorrir.

[ANDRADE, C. Drummond de - Como um presente p. 135
in A rosa do povo, 42°edição, Ed. Record, Rio de Janeiro - São Paulo]


Envelheço na cidade;
"E iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas".
- e dos anos.

Um comentário:

  1. Feliz aniversário, Fer.

    Drummond é foda: "no escuro, é permitido sorrir."

    Beijos

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