quarta-feira, 9 de novembro de 2011



Um guarda-chuva
cai no chão de braços abertos
Um homem sonha
em partir e a mulher
tem uma furiosa
vontade de viver
Enquanto a mão
que alisa o seio
lã vermelha que palpita
alisa o pescoço
e o tronco marcado
pelo canivete do beijo
pela lembrança do fósforo
riscado no escuro
h.f.m

"A vida inteira que podia ter sido e não foi."

segunda-feira, 26 de setembro de 2011


No quarto de hotel
a mala se abre: o tempo
dá-se em fragmentos.

Aqui habitei
mas traças conspiram
uma idade de homem
cheia de vertentes.

Roupas mudam tanto.
Éramos cinco ou seis
que hoje não me encontro,
clima revogado.

Uma doença grave
esse amor sem braços
e toda a carga leve
que súbito me arde.

No quarto de hotel
funcionam botões
chamando mocidade
fogo, canto, livro.

Vem a quarteira
depositar a branca
toalha do olvido
insinuar o branco

sabão da calma.
A perna que pensa
outrora voava
sobre telhados.

Em copo de uísque
lesmas baratas
acres lembranças
enjoo de vida.

Ponho no chapéu
restos desse homem
encontrado morto
e do nono andar

jogo tudo fora.
A mala se fecha: o tempo
se retrai, ó concha.

[ANDRADE, C. Drummond de - Assalto p. 76/77 in A Rosa do Povo
42ª edição - Rio de Janeiro: Record , 2009]



"Minha cabeça é minha bagagem, e a estrada é uma velha amiga."

quarta-feira, 25 de maio de 2011



Tudo parece uma besteira,

a experiência diluída no cotidiano,

até que vem

uma dor de cabeça


uma ressaca de tudo:

o amor, a memória e outras funções

inevitavelmente

se perdem


e o corpo procura um ponto

de fuga, um lugar

onde se resguardar

como se acobertasse um crime.


[FERRAZ, H. - Outras panes, p. 31 - Pré-Desperto

in Coisas Imediatas (1996-2004)]



fujo




refúgio.

quinta-feira, 10 de fevereiro de 2011

Clara, minha Clara, não me conte, cante. Não me conte contos nem me conte contas, cante.

Sur le pont de Nantes... 20


Recite: tragédias populares decorrentes da desobediência. Meninas-ofélias boiando na harmonia das ninféias. Menina: desobediência devorada no ventre frio das águas, no ventre quente dos lobos.

Canta Bárbara:


Il pleut sur Nantes
Donne-moi la main
La ciel de Nantes
Rend mon coeur chagrin... 21


Não foi por falta de água, Jules-Vernes-Nantês, que o Titanic afundou. As lágrimas de Alice gigante afogam seus portos frios e cinzas. Nantes.
Bárbara: lança chuva fria para aquecer o coração claro de Clara, gélido:


Il est parti sans un je t´aime.
Mon père, mon père. 22


Guidone, desconstrói:

Comme dit Marguerite Duras en experte
Ce monde est pourri, qu´il aille à sa perte. 23


Deite-se nos não-me-importo. Orelhas furadas no berço: você é mulher. Estigmatizada, separa, cinde, perfura. Põe um chumbo em cada orelha. Empurra a cabeça para baixo... Você queria olhar para o fundo escuro dos olhos negros da abuela. Alçava a cabeça sem custo, no esquecimento do peso, talvez demais, altiva. Sempre para o mar tristonho de seus olhos de Pasionaria calada.
Cante:


Porque te vas
Todas las promesas de mi amor se irán con/ti/go...


Tão alegrinho, tão inocente, como a culpa assassina da menina-cria cuervos. Trilha musical. Intérprete: Jeanette, eterna mocinha que também dizia: Iou, souy reibeldeee puorque o mundo me hixo asssi...
Com cara de anjinho, sem culpa, sem sotaque britânico, sonsa, com sucesso, sem frivolidade maior, com não-culpadps e sim-atenciosos, desfolhando a margarida sem piedade: Il m´aime, passionament, à la folie, pas du tout. 24
São 25% de chances para os paus du tout; 75% para o sim, contra toda a estatística objetiva. Margarida murcha que canta na escala de Dó Maior. A dominante.
Você prefere a de ré, a menor.
Regina de Elis, repetência escolar, Réquiem por un campesino español ou não, resdistribuição de renda, restituição do patrimônio roubado, requebros nas procissões, rebentos relutantes sem Petit Prince preso à idéia; ressonâncias sem magnetismo, reaprender as origens, re-isento de bis, como da primeira vez.
Dorme Clara. Eu vigio.
____________________________________________________________________
*Notas de rodapé:
20 Na Ponte de Nantes, canção popular francesa que pune a desobediência de uma jovem que, escondida, vai dançar na ponte da cidade e acaba caindo - e morrendo - nas águas do Loire.
21 Chove em Nantes/ dê-me sua mão / o céu de Nantes / torna meu coração triste.
Canção de Bárbara (1930-1997) dedicada ao seu pai, in memoriam. Nela, Bárbara o perdoa pelo abandono e pelo incesto sofrido na infância.
22 Ele se foi sem um te amo, / meu pai, meu pai.
23 Como diz Marguerite Duras, uma expert / este mundo está podre, que vá à sua perda.
24 Ele me ama, com paixão, com loucura, de maneira alguma. Dizeres com os quais, na França, se despetala a margarida.
[AYBAR, Lola - Ré menor
in Fuga em azul, Escrituras Editora, 2007]
Um encanto de livro, de professora e, acima de tudo, de ser humano.
"Gracias, tia Lola!", como se ouve por aí... ;)

sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

(Jackson Pollock - Number 7 - 1951)

"Já naquela primeira conversa sobre o pinheirinho, chamou-se a si próprio de Lobo da Estepe, e isso também me causou estranheza e perturbou um pouco. Que expressão aquela! Mas acabei por admiti-la não só por hábito, como porque, em meu pensamento, só chamava o homem por aquele apelido de Lobo da Estepe, e até hoje não saberia dar-lhe nenhum outro nome mais apropriado do que este. Um lobo da estepe, perdido em meio à gente, na cidade e na vida do rebanho - nenhum outro epíteto poderia definir com mais exatidão aquele ser, seu tímido isolamento, sua natureza selvagem, sua inquietude, seu doloroso anseio por um lar, sua falta absoluta de um lar."
[HESSE, Hermann - O Lobo da Estepe
Editora Record (1927)]


É assim que começo um novo ano: com a sensação da mistura de todos os outros que já se passaram, e prossigo, assim, à caminho do novo, definitivamente sem por ele querer perseguir. Dentro dessa mistura toda, surgiu Hesse com seu lobo, me fazendo parar mais ainda pra pensar sobre o jargão "ano novo, vida nova". Realmente a busca pelo seu próprio ser, pela sua essência se faz nova a cada novo ano, a cada nova semana, a cada novo dia; mas essa já é uma busca antiga, passada, remexida, empoeirada, que não se faz mais excitante por ser o primeiro dia de um novo ano. Ela se faz, cada vez mais pra mim, exaustiva, cicatrizada e com os pés no chão.


O novo só é a continuação dos que passarão - e que, eu, passarinho.


(...) estou procurando, estou procurando. Estou tentando me entender. Tentando dar a alguém o que vivi e não sei a quem, mas não quero ficar com o que vivi. Não sei o que fazer do que vivi, tenho medo dessa desorganização profunda. (...)Mas tenho medo do que é novo e tenho medo de viver o que não entendo - quero sempre ter a garantia de pelo menos estar pensando que entendo, não sei me entregar à desorientação.

[Clarice Lispector, donzela que espera no topo do castelo alguma explicação.]


Um feliz ano velho embrulhadinho em um novo ano.