segunda-feira, 28 de junho de 2010


Não venhas sentar-te à minha frente, nem a meu lado;

Não venhas falar, nem sorrir.

Estou cansado de tudo, estou cansado

E quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando

Ou até sem sonhar,

Mas envolto num vago abandono brando

A não ter que pensar.

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até

Pensar não foi certo em mim.

Deitei fora entre ortigas o que era a minha fé,

Escrevi numa página em branco, «Fim».

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,

Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro

Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,

Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes a meu lado, nem fales,

Só quero dormir, uma morte que seja

Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales —

Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo

As esperanças e ambições que tive,

E hoje sou apenas um suicídio tardo,

Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,

Como um barco abandonado,

Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma

Sem se lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras

Entrevê na distância do mar

O fim do último representante das galeras,

Que não sabia nadar.


[PESSOA, F. - Cansaço - Poesias Inéditas (1919-1930) (Nota prévia de Vitorino Nemésio e notas de Jorge Nemésio.) Lisboa: Ática, 1956 (imp. 1990). - 78]


Sublimemente esgotada. No êxtase do sentir-se por um triz. Pifando o intelecto, o concreto e até mesmo o imagético.


Chega um tempo em que não se diz mais: meu Deus.

Tempo de absoluta depuração.

Um comentário:

  1. sabe o mais engraçado?
    é que nesses tempos não dá pra falar que isso é "só poesia". Na atual situação é LITERALMENTE isso..

    "Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
    Como um barco abandonado,"

    Faço sua (ou de Fernando Pessoa) minha palavra.
    Beijos

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